O fenômeno ‘incel’ e as masculinidades em crise

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Tema abordado na série Adolescência, sucesso recente da Netflix, expõe a crescente disseminação de ódio, preconceito e violência contra mulheres nas redes sociais e traz à tona reflexões importantes sobre valores e vulnerabilidades dos jovens e da sociedade atual

CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

Muitas pessoas sofrem com sentimentos de exclusão, de solidão, e se queixam de não ter amigos de verdade. Algumas têm também problemas com sua autoestima e chegam a pensar que ninguém jamais se interessaria por elas. Para certas pessoas, esses sentimentos se intensificam tanto que se transformam em grandes frustrações ou até em ódio e desejo de vingança.

Nas últimas décadas, um fenômeno emergiu dos cantos mais obscuros da internet: a cultura incel. À primeira vista, parece apenas um grupo de pessoas solitárias discutindo suas dificuldades amorosas. Mas, por trás de fóruns de discussão na internet e perfis anônimos, cresceu uma subcultura que mistura ressentimento, teorias conspiratórias de gênero e, em casos extremos, a celebração da violência.

A recente minissérie da Netflix Adolescência aborda esse assunto com muita sensibilidade e oferece reflexões importantes. A trama gira em torno de Jamie Miller, um garoto de 13 anos que é preso sob a acusação de assassinar uma colega de escola. A narrativa acompanha a investigação policial, as sessões com uma psicóloga forense e os desdobramentos familiares, revelando que Jamie era vítima de bullying e estava imerso em comunidades on-line ligadas à subcultura incel e ao movimento redpill (que defende a hegemonia dos homens e dissemina ódio e preconceito contra as mulheres).

Conhecer a cultura incel e seus desdobramentos é fundamental para quem deseja entender como masculinidades em crise, solidão e internet se misturam em discursos que, silenciosamente, podem cooptar jovens vulneráveis e incentivá-los à radicalização.

A manosfera e a cultura incel

O advento e a popularização da internet criaram novas formas de conexão que permitem o encontro de pessoas do mundo todo com interesses em comum e a formação de comunidades em espaços digitais, como fóruns, blogues, redes sociais e até seções de comentários em vídeos on-line.

Um desses espaços foi um site criado em 1997 pela jovem canadense Alana. O ‘Projeto de Celibato Involuntário de Alana’ era um espaço de acolhimento, apoio mútuo e troca de experiências para homens e mulheres que enfrentavam dificuldades afetivas, assim como ela havia tido.

O termo ‘invcel’ (posteriormente simplificado para ‘incel’) foi uma abreviação, criada por Alana, de ‘celibatário involuntário’ (do inglês, involuntary celibate), que significava uma pessoa que nunca havia tido uma relação sexual ou que não tinha um relacionamento há muito tempo.

Com o tempo, essas pessoas que se identificavam como incels foram se encontrando em fóruns anônimos na internet, como o 4chan e o Reddit, e essa comunidade foi se tornando exclusivamente masculina e atraindo discursos cada vez mais radicais.

Paralelamente ao crescimento dos incels, outros grupos masculinistas foram surgindo na internet, como os ‘ativistas pelo direito dos homens’, os ‘artistas da sedução’ e os ‘homens seguindo seu próprio caminho’. 

Esses e outros grupos compõem o que passou a ser chamado de ‘manosfera’, um ecossistema virtual formado por homens que compartilham uma visão primitiva de masculinidade, enaltecendo características como força e virilidade e repudiando qualquer forma de feminismo. 

Dentre esses grupos, os incels são os que adotam uma postura mais vitimista. Por acreditarem em uma hierarquia baseada na aparência, sentem que já nasceram condenados a não ter relações afetivas e sexuais e que não há nada que possam fazer para mudar isso. 

Na série Adolescência, é citada a ‘teoria 80/20’, que afirma que 80% das mulheres se interessam por apenas 20% dos homens, deixando todos os outros sem qualquer oportunidade no campo amoroso e sexual. E esse interesse estaria relacionado principalmente a características físicas (como formato do crânio e da mandíbula, estatura, musculatura e formato e tamanho dos olhos e do nariz).

Esses 20% de homens são chamados de ‘Chads’, ou ‘alfas’, que seriam homens dominantes, atraentes, favorecidos pela própria genética. Já os ‘betas’, ou os ‘normies’, seriam homens que não têm essas características e, por isso, são subordinados, são usados por mulheres apenas para inflar seus egos, mas jamais seriam escolhidos por elas.

O discurso incel frequentemente extrapola o campo amoroso e leva a pensamentos no campo social e político. Muitos desses homens sentem que perderam direitos e espaço por culpa dos avanços sociais conquistados pelas mulheres, em especial pelo feminismo. E, como mostram pesquisas científicas, ao se sentirem injustiçados e com menos direitos do que seus antepassados, muitos desses homens alimentam um sentimento de raiva que pode convergir para a vingança e a violência, tanto em nível relacional (com agressão doméstica e estupro, por exemplo) quanto social.

A ideologia das pílulas

Em 1999, foi lançado o filme Matrix, que se tornou um ícone da ficção científica. Em certo momento da história, o protagonista, Neo, precisa escolher entre duas pílulas para tomar: a pílula azul, que o manteria em uma realidade ilusória, confortável e construída artificialmente; ou a pílula vermelha, que o permitiria enxergar a verdade crua sobre o mundo real, dominado por máquinas e manipulações. 

Recentemente, essa metáfora foi apropriada por grupos da manosfera, que acreditam que as mulheres são privilegiadas na sociedade atual e que os homens estão sendo enfraquecidos e perdendo direitos e que a verdadeira masculinidade está em declínio.

Nesse contexto, um homem bluepill (ou seja, que escolheu a pílula azul) seria aquele que não enxerga essa suposta realidade e acredita na equidade entre os gêneros, sendo retratado como alguém fraco, iludido ou manipulado. Já o redpill (que escolheu a pílula vermelha) é aquele que consegue enxergar essa suposta verdade sobre a dominação feminina na sociedade, adotando uma postura misógina.

Entre os incels, no entanto, tende a prevalecer uma terceira ideologia, mais radical e pessimista: a da pílula preta. Os blackpills são aqueles que entendem que seu fracasso (afetivo e sexual) decorre de fatores biológicos impossíveis de serem modificados; portanto, seria inútil lutar contra esse suposto sistema feminista que os oprime.

Por acreditarem ser impossível sair dessa condição de celibatário, o discurso de muitos deles converge para a hostilidade, a apologia à violência e até para a sua prática. Em alguns casos, os incels blackpill veem como única saída tirar a própria vida e incentivam outros na internet a fazerem o mesmo.

Os incels enxergam a violência contra as mulheres como uma retribuição, uma vingança pelo sofrimento que passaram. Vários episódios de violência em massa (especialmente nos Estados Unidos) tiveram ligações com o movimento incel. O mais famoso deles é, certamente, o massacre de Isla Vista, em 2014, quando o jovem Elliot Rodger matou seis pessoas, deixou outras quatorze feridas e, ao final, tirou a própria vida. Nos fóruns incels, o feito de Rodger foi celebrado e ele se tornou um mártir, um símbolo da vingança contra as mulheres e um exemplo a ser seguido. 

A partir desse momento, o fenômeno incel foi catapultado dos porões da internet para a grande mídia. Mais do que homens frustrados e com uma masculinidade tóxica e problemática, o mundo descobriu que estávamos lidando com potenciais terroristas, uma ameaça real à segurança pública e à saúde mental de jovens na internet.

Na série Adolescência, a investigação do assassinato de uma jovem mostra que o acusado do crime, um garoto de 13 anos, era vítima de bullying e estava imerso em comunidades on-line conservadoras e radicais associadas ao ódio e ao preconceito contra as mulheres

De quem é a culpa?

A série Adolescência aborda o assunto com tanta sutileza que não entrega vilões escancarados, não põe a culpa sobre nenhum elemento individualmente. Como explicam psiquiatras e psicólogos que assistiram à série, o menino Jamie demonstra algumas características que indicariam um possível transtorno de conduta (como a sua irritabilidade, suas mentiras, manipulações), além de uma grande desconfiança das pessoas, problemas de autoestima, distorção de autoimagem. Mas isso se dá de maneira tão sutil que seria equivocado atribuir a ele qualquer diagnóstico, como o transtorno de personalidade antissocial (popularmente chamado de psicopatia). Ou seja, Jamie poderia ser muitos dos jovens saudáveis (ao menos aparentemente) que você conhece.

Os pais do garoto também não são muito diferentes de outros tantos pais. Demonstram carinho pelo filho, provêm aquilo que é mais necessário (ao menos materialmente) e não aparentam ser exageradamente autoritários ou negligentes. Mas são mostradas, de maneira sutil, algumas condutas questionáveis, como o machismo do pai e a constante invalidação daquilo que é dito pelas mulheres da casa, o desconhecimento do que o filho faz quando está no quarto, os sites que ele entra, os conteúdos que acessa. Como explica a psicóloga Ilana Pinsky em entrevista à Veja, dar espaço ao filho é diferente de estar totalmente alheio, e os pais de Jamie não fazem ideia de quem é seu filho, o que ele pensa, o que faz, o que almeja.

A série vai além e ilustra o abismo geracional que vivemos, a ponto de os adultos da série sequer compreenderem a linguagem utilizada pelos adolescentes, criando uma enorme lacuna comunicacional. Um jovem pode estar expressando vários sentimentos, dando pistas sobre seu estado emocional ou até pedindo socorro (seja em casa, na escola ou na internet) sem que boa parte dos adultos compreenda. E, como mostra a série, às vezes basta que um adulto preste atenção para fazer a diferença.

A escola de Jamie também não se diferencia de tantas outras. Talvez tenhamos normalizado o fato de que a escola é um espaço muitas vezes caótico, onde pessoas se encontram por obrigação, mas não criam vínculos reais e profundos. Um adolescente sabe muito bem que a escola pode ser um ambiente hostil, e suas ações, interações e amizades devem ser cuidadosamente pensadas para que passe ileso e não se torne alvo de piadas, bullying ou algo pior. 

E se a escola nem sempre é um lugar seguro, tampouco é sua casa. Em um mundo hiperconectado, o lar deixou de ser um refúgio, já que, em poucos segundos de acesso às redes sociais, um adolescente pode ter que lidar com bullying e sentimentos de exclusão e solidão e pode ter contato com conteúdos que normalizam o ódio e a violência.

Tarefa coletiva

O fenômeno incel não é resultado de um único fator ou de escolhas individuais isoladas. Ele reflete feridas sociais profundas: padrões de beleza inalcançáveis, modelos de masculinidade tóxicos e primitivos, ausência de espaços seguros para lidar com emoções e a influência descontrolada de conteúdos e dos algoritmos de recomendação na internet. Enfrentar essa realidade exige mais do que proibição ou censura: exige presença, escuta e senso de comunidade.

O primeiro passo é saber ouvir os jovens e reconhecer sinais de alerta, como solidão, baixa autoestima, raiva e isolamento. Sem acolhimento e presos à ideia de que vulnerabilidade é fraqueza, dificilmente conseguiremos nos conectar com eles.

É urgente trazer à tona e questionar os valores que fundamentam o discurso incel: o determinismo biológico, que associa valor masculino à aparência física; a crença em uma desigualdade sexual que favorece apenas os homens atraentes, dentro do padrão de beleza; a projeção de suas frustrações nas mulheres, que passam a ser vistas como inimigas e cruéis; o fatalismo social, que nega a possibilidade de mudança; e a autovitimização. Esses ideais, muitas vezes disseminados pela cultura pop, pela pornografia, pelas redes sociais e por influenciadores, precisam ser debatidos, desconstruídos e substituídos por modelos de masculinidade mais humanos e plurais.

Enfrentar a ideologia incel é, portanto, uma tarefa coletiva. Um convite a repensar como educamos nossos jovens, como acolhemos suas dores e como podemos oferecer caminhos alternativos à cultura incel, de modo que ninguém precise recorrer ao ódio ou à violência para ser ouvido. Ajudar os jovens a atravessar essa fase tão complexa em um mundo tão hostil e educá-los para que não caiam nesses discursos é responsabilidade de todos. Quando um jovem é capturado por essas ideologias, é sinal de que falhamos – como seres humanos e como comunidade.

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